A Moura Torta - Sílvio Romero

A moura torta


(Pernambuco)


Uma vez havia um pai que tinha tres filhos, e, não tendo outra cousa que lhes dar, deu a cada um uma melancia, quando elles quizeram sahir de casa para ganhar a sua vida. O pai lhes tinha recommendado que não abrissem as fructas senão em logar onde houvesse agua. O mais velho dos moços quando foi vêr o que dava a sua sina, estando ainda perto da casa, não se conteve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça muito bonita dizendo: «Dai-me agua, ou dai-me leite.» O rapaz não achava nem uma cousa nem outra, a moça cahiu para traz e morreu.

O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achando não muito longe de casa, abriu tambem a sua melancia, e sahiu de dentro uma moça ainda mais bonita do que a outra; pediu agua ou leite, e o rapaz não achando nem uma cousa nem outra, ella cahiu para traz e morreu.

Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida foi mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma fonte. No abril-a pulou de dentro uma moça ainda mais bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: «Quero agua ou leite.» O moço foi á fonte, trouxe agua e ella bebeu a se fartar. Mas a moça eslava núa, e então o rapaz disse a ella que subisse n'um pé de arvore que havia alli perto da fonte, em quanto elle ia buscar a roupa para ella. A moça subiu e se escondeu nas ramagens. Veio uma moura torta buscar agua, e, vendo na agua o retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu e pôz-se a dizer: «Que desaforo! pois eu sendo uma moça tão bonita, andar carregando agua!…»

Atirou com o pote no chão e arrebentou-o. Chegando em casa sem agua e nem pote levou um repellão muito forte, e a senhora mandou-a buscar agua outra vez; mas na fonte fez o mesmo, e quebrou o outro pote. Terceira vez fez o mesmo, e a moça não se podendo conter deu uma gargalhada.

A moura torta, espantada, olhou para cima e disse: «Ah! é você, minha netinha!… Deixe eu lhe catar um piolho.» E foi logo trepando pela arvore arriba, e foi catar a cabeça da moça. Infincou-lhe um alfinete, e a moça virou n'uma pombinha e avoou! A moura torta então ficou no logar d'ella. O moço, quando chegou, achou aquella mudança tamanha e estranhou; mas a moura torta lhe disse: «O que quer? foi o sol que me queimou!… Você custou tanto a vir me buscar!»

Partiram para o palacio, aonde se casou. A pombinha então costumava a voar por perto do palacio, e se punha no jardim a dizer: «Jardineiro, jardineiro, como vae rei, meu senhor, com a sua moura torta?» E fugia. Até que o jardineiro contou ao rei, que, meio desconfiado, mandou armar um laço de diamante para prende-la, mas a pombinha não cahiu. Mandou armar um de ouro, e nada; um de prata, e nada; afinal um de visco, e ella cahiu. Foram leval-a que muito a apreciou. Passados tempos, a moura torta fingiu-se pejada e pôz mattos abaixo para comer a pombinha. No dia em que deviam botal-a na panella, o rei, com pena, se pôz a catal-a, e encontrou-lhe aquelle carocinho na cabecinha, e pensando ser uma pulga, foi puxando e sahiu o alfinete e pulou lá aquella moça linda como os amores. O rei conheceu a sua bella princeza. Casaram-se, e a moura torta morreu amarrada nos rabos de dous burros bravos, lascada pelo meio.